Judiciário e Órgãos Reguladores

Por Adacir Reis

 

Em julho passado morreu John Paul Stevens, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1975 a 2010.

Indicado por Gerald Ford, a aprovação de Stevens no Senado para a Suprema Corte se deu por 98 votos a zero. Nos dias de hoje, marcados por uma belicosidade disfuncional, um placar como esse seria inimaginável.

Um dos seus legados foi o voto condutor que deu no caso Chevron v. NRDC, em 1984, que ficaria famoso como a Teoria da Deferência Judicial aos Órgãos Reguladores.

Em tal julgamento Stevens conseguiu sistematizar um entendimento pelo qual, diante de comandos legais abertos, em matérias técnicas que exigem conhecimento especializado, o Judiciário deve se conter e prestar deferência aos atos regulatórios e às decisões do Poder Executivo.

Com a crescente complexidade e dinamismo das relações econômicas e sociais, o Poder Legislativo tem delegado competências de regulação para órgãos especializados do Executivo. Tal realidade deve ser levada em conta pelo Judiciário, pois o ato técnico de uma agência está, em princípio, legitimado pela delegação do Congresso Nacional e pelo dever de execução de políticas públicas conferido ao Executivo.

No Brasil, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, antenado com a jurisprudência norte-americana, nos ensina:

“Criou-se então a Teoria da Deferência, segundo a qual o Poder Judiciário, em vista da separação de poderes, da legitimação específica que tem o Poder Executivo para tomar decisões na esfera administrativa, e da expertise técnica de que são dotadas as agências reguladoras, deve prestar deferência às decisões e aos atos administrativos dessas agências.

Isso, obviamente, não significa que esses atos administrativos sejam inatacáveis, que não sejam passíveis de controle jurisdicional. Significa apenas que o ônus para que sejam de alguma maneira controlados é muito maior, e o Poder Judiciário, em princípio, deve deferência à autoridade administrativa” (Saúde Suplementar: o dever de deferência às normas da ANS na jurisprudência do STJ. Revista Jurídica de Seguros. Maio 2019. CNseg).

 

Num precedente de previdência privada, em que se questionavam regras de resgate de reservas em um plano previdenciário, o Ministro Villas Bôas Cueva as considerou válidas e reconheceu a autoridade do órgão regulador (REsp 1.518.525/SE).

Em outro importante julgado, referente a aumento real de aposentadoria complementar sem o devido custeio, o Ministro Luís Felipe Salomão, com sua característica racionalidade, reconheceu o acerto do ato que impedira tal aumento, concluindo que o caso não poderia ensejar “solução individualizada discrepante da uniforme oriunda do órgão fiscalizador” e que a hipótese era de “descabimento da excepcional intervenção do Poder Judiciário na relação contratual” (REsp 1.414.672/MG).

O Ministro Mauro Campbell já teve a oportunidade de assim se manifestar:

“Em matéria eminentemente técnica, que envolve aspectos multidisciplinares (telecomunicações, concorrência, direito de usuários de serviços públicos), convém que o Judiciário atue com a maior cautela possível” (REsp 1.171.688/DF).

Nos setores regulados de maior complexidade, deve prevalecer o princípio da deferência judicial aos órgãos reguladores, o que naturalmente não impede o Judiciário de apreciar o caso e intervir se constatar alguma ilegalidade. E o Legislativo pode, a qualquer tempo, reduzir ou ampliar as competências delegadas a tais órgãos especializados.

Nesse contexto, é fundamental aprimorar o funcionamento das agências reguladoras e dos órgãos de supervisão, tornando-os mais capazes, estáveis, impessoais e transparentes.  

Em geral, a contenção judicial decorrente dessa deferência ao regulador, ao desestimular a ideia de que toda norma regulatória pode ser derrubada na Justiça, acaba prestigiando a força dos contratos e possibilitando maior segurança jurídica.

Como já advertiu o Presidente do STJ, Ministro João Otávio de Noronha, em evento do Colégio Permanente das Escolas de Magistratura – COPEDEM, o Poder Judiciário não pode ter a pretensão de funcionar como uma gigantesca agência reguladora, sob pena de gerar mais incerteza e mais conflitos.

John Paul Stevens, ao ingressar na Suprema Corte em 1975, foi rotulado como um republicano de carteirinha. Ao se aposentar, em 2010, aos noventa anos de idade, era visto como um liberal, mais identificado com as bandeiras dos democratas.

Com a ação implacável do tempo, há posições jurídicas que se tornam motivo de orgulho, de vergonha ou simplesmente se revelam datadas. Antes de falecer aos noventa e nove anos de idade em Fort Lauderdale, Stevens teve a oportunidade de lançar seu livro de memórias (The making of a Justice: Reflections on My First 94 Years), com motivos para se orgulhar do voto proferido em uma decisão da Suprema Cortes norte-americana que permanece central em qualquer debate sobre os limites do Judiciário em matéria regulatória.

*Adacir Reis é advogado e presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia. É autor do livro Curso Básico de Previdência Complementar (RT) e um dos autores do livro Arbitragem e Mediação (Atlas). Foi membro da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Reforma da Lei de Arbitragem e Mediação.

Artigo publicado no jornal VALOR ECONÔMICO, edição de 23.09.2019.

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